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Como Cesare La Rocca transformou destino de milhares de jovens da Bahia

Sentado numa poltrona do avião, Edvaldo Lima olhava do quadradinho da janela uma Salvador cada vez menor, como uma maquete. Enquanto a aeronave alcançava altitude, de longe a capital baiana transmitia uma tranquilidade que ele passou anos procurando nas ruas de sua cidade, quando seu único brinquedo era um rodo de limpar para-brisa dos carros parados na sinaleira.

O sinal fechado era sua única oportunidade, quando finalmente pedia alguns trocados com a mãe. “Sai, moleque. Vai estudar!”. O olho mareia. Neste momento, lembra-se de outras crianças daquele início dos anos 90, vítimas de grupos de extermínio nas noites frias de Salvador.

Quando o peito se apertava de tristeza, ele sente uma cutucada. Era ele, Cesare La Rocca, cortando os pensamentos do jovem de 18 anos. Eles se olharam, Edvaldo disfarça o choro. “Agora você acredita que é possível? Você está aqui, cara. Você pode tudo”, disse Cesare, enquanto o avião conduzia meninos do Projeto Axé para Nova York. Era uma apresentação cultural e a primeira viagem de avião de um ex-menino de rua. Aquele rodo do passado foi trocado por instrumentos musicais. E Salvador, de longe, voltou a ficar serena novamente.

Edvaldo é um dos órfãos de Cesare, pai de mais de 30 mil crianças, a maioria em situação de vulnerabilidade, que mudaram seus destinos graças ao Projeto Axé, fundado por La Rocca em 1990. Ler relatos reais como o de Edvaldo dá um pouco de dimensão do quanto Cesare foi importante no combate à pobreza. Mesmo católico, batizou seu sonho social com a energia que sustenta a Bahia e as religiões de matrizes africanas: o axé.

E foi nas crianças baianas que este italiano enxergou esta força dos terreiros. Italiano, não. Baiano mesmo. Se nascer na Bahia é um estado de espírito, Cesare La Rocca se descobriu nativo desta terra na primeira brisa salgada que bateu no seu rosto. Na verdade, tenho minhas dúvidas sobre a origem de La Rocca. É bem possível que ele tenha brotado de um romance de Jorge Amado, em alguma noite de magia em Salvador. Um herói dos excluídos, pai dos capitães da areia, santo das sinaleiras, um orixá dos pastores da noite.

A Bahia tem um mistério especial, talvez único no mundo. Aqui é possível andar ao lado de divindades de carne e osso, fora dos livros, que andam pelos becos e praças da cidade de Salvador com a força e um desejo divino de mudar um pouco o destino desta terra lambuzada de dendê, cultura e miséria. Vimos Dulce, também tivemos Cesare conosco. Foi nos anos 90 que o Anjo Bom nos deixou.

Mas foi nesta mesma época que La Rocca surgiu para dar um futuro às crianças em estado de vulnerabilidade, dando acesso a ações educativas e culturais, como aulas de dança, costura, música, moda e capoeira. Não à toa, quis o destino que Cesare nos deixasse justamente numa cama de hospital nas Obras Assistenciais Irmã Dulce, como uma benção entre estes santos com quem convivemos e aprendemos.

Duro é saber quem vai substituir estas peças. Mais um pedaço da Bahia foi arrancado e não sabemos o que fazer com mais um anjo indo embora em momentos tão difíceis. Será preciso muito axé para superar uma perda quase insuperável, apesar do legado deixado por ele. Se não pudermos tê-lo mais entre nós, que ele sirva de inspiração.

Olhar um menino de rua como Cesare enxergou já é um bom começo para honrar a memória dele. “Sempre olhamos para crianças que ninguém quer. Eles estavam na rua, ninguém quis. Nós quisemos. O Axé abriu seu ventre maternal e paterno. É, ao mesmo tempo, mãe e pai”, disse, um dia, La Rocca. Enquanto o Projeto Axé continuar transformando vidas, Cesare continuará vivo entre nós.

Confira relatos emocionantes sobre Cesare na Bahia:

EDVALDO LIMA, 40 ANOS

Desde criança tive uma infância batalhadora e aguerrida ao lado da minha mãe nas ruas de Salvador. Residimos na praça da Piedade, mas sempre estávamos circulando pela cidade em busca de alimentação e, principalmente, segurança. Nas ruas os sonhos são trocados pela necessidade da sobrevivência, não existem regras e a lei é a dos mais fortes. E o mais forte era a repressão. Grupos de extermínio matavam crianças à noite nas ruas da capital, no início dos anos 90. Era um medo diário, muito complicado. Eu tinha 9 anos quando tive meu primeiro contato com Cesare, na Praça da Piedade. Eu estava com meu rodo para limpar para-brisa no sinal. Parou um carro, saíram várias pessoas, os educadores. Entre eles, Cesare. Um homem branco, com um sotaque de gringo, sorrindo alto e chamando as crianças: ‘Venham, venham’, enquanto distribuía lápis de cor e uma folha de papel em branco. Eu fiquei de longe meio desconfiado, sem saber se me aproximava ou não. As outras crianças foram, eu não. Ele veio até mim, me estendeu as mãos, ofereceu todo o material de desenho e me chamou para desenhar com os demais. Ele se tornou um ilustre visitante, era uma festa quando ele chegava. Até que, em 1994, fui finalmente para o Projeto Axé. Saí de vez das ruas e fui fazer parte da unidade de música que tinha a parceria com o Bloco Afro Muzenza. Minha vida, nesse momento, seguia uma trajetória de possibilidade, de inclusão e transformação. Passei a sonhar e acreditar no futuro. Acreditando nos meus sonhos me tornei educador do próprio Projeto Axé, na área social. Imagine, de menino de rua a educador. Rodei o mundo com Cesare, conheci Nova York, Itália, Portugal, Holanda, França e África. Ele nunca deixou de acreditar em todos nós, como um verdadeiro pai. Meu grande objetivo de ser educador é poder transformar a vida de outros jovens como eu. Dessa forma, vou manter o legado do grande mestre Cesare, que nos deixou um vazio no peito com sua partida. A Bahia toda está de luto, tenho certeza. Não sei o que seria da minha vida sem esse anjo da guarda das ruas de Salvador. Ele me transformou no que sou hoje.

PAMELA MAGALHÃES, 22 ANOS

Eu era uma criança muito traquina, mal educada e rebelde. A minha mãe me abandonou e eu não sei quem é meu pai. Morava com meu irmão em um quartinho atrás da casa de minha bisavó, no Calabar. Ela e minha madrinha que ajudavam a gente com comida. Conheci o Projeto Axé quando eles fizeram uma visita no bairro e foram em minha casa. Cesare transformou a minha vida de uma forma surreal. Me encantei com o acolhimento, me encantei com o cuidado que eles tiveram comigo desde o primeiro contato. Porém, devido ao abandono de minha mãe, eu tinha várias crises pesadas, não estava bem. Os educadores de lá tiveram todo um cuidado comigo. Eles nunca soltaram a minha mão, muito pelo contrário. O Projeto Axé estava sempre presente, como se fosse minha família, sabe? Eu entrei na área da dança, a dança na época era como se fosse uma terapia para mim, esquecia todos os meus problemas. Mesmo assim, teve uma época que nada fazia mais sentido para mim. Não entrava na minha cabeça o fato de não ter a minha mãe ao meu lado. Tive as minhas piores crises e comecei a pensar em desistir da vida, de verdade. Mas Cesare conseguiu me colocar para fazer acompanhamento psicológico e o meu pensamento foi mudando com o tempo. E minha vida também. Fui tomando amor à dança e consegui pisar em lugares que jamais imaginei um dia estar. Me apresentei no teatro Castro Alves, fiz parte do videoclipe de Alok e conheci vários artistas, como Lázaro Ramos, Ivete Sangalo e Negra Li. Cesare foi como um anjo na minha vida, eu sempre tive um amor por ele desde início. Eu escrevia cartas para ele contando minha vida, agradecendo. Cesare colocava no mural do Projeto Axé e me respondia! Hoje eu trabalho, sou independente, moro sozinha e consegui conquistar as minhas coisas através da garra que aprendi a ter lá dentro. Antes deles formarem as pessoas em artistas, eles transformam a gente em cidadão! Muito obrigada Cesare e a toda equipe do Projeto Axé. Vocês mudaram a minha vida e eu levarei comigo para sempre essa gratidão. Axé, axé, axé!

PAULO DE ANDRADE LEITE SANTANA, 38 ANOS

Creio que o ano era 1992 ou 93. Eu tinha 9 anos e conhecia as ruas de Salvador como a palma da minha mão. Acho que há três anos já vivia na rua, não frequentava a escola. Ficava olhando carro na Pituba e pedia ajuda às pessoas que passavam. Pedia comida mesmo, precisava sobreviver. Nunca roubei nem pratiquei delitos, mas muitas vezes dormia na rua, apesar de ter casa. Não tinha como voltar para casa, preferia ficar em algum canto da rua, lá pela Pituba mesmo. Na verdade eu morava com minha mãe e cinco irmãos, três mulheres e dois homens. Era uma casa de tábua em Fazenda Coutos 3. Lá, todo mundo tentava ajudar de um jeito. Eu precisava ajudar minha família também e levava alimento para todos e uns trocados quando dava. Um dia, o Projeto Axé me encontrou na rua e me acolheu. Foram na casa de minha mãe, que autorizou minha ida às oficinas, desde que eu voltasse para a escola. Não sei como seria minha história se não acontecesse aquele encontro como Cesare, mas foi um momento transformador. Entrei em oficinas de tudo que você imaginar, conheci também a capoeira, minha paixão até hoje! Fui para escola estudar! Ganhei cursos profissionalizantes, consegui bolsas, nunca mais precisei pedir comida e esmola na rua. Muitas portas se abriram. Casei e tenho uma família linda, com um filhão de 14 anos com o mundo pela frente. Também sou carpinteiro e marceneiro, nunca faltou trabalho e vontade. Me orgulho de ser cipista e ativista do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Construção, onde ajudo meus companheiros. Não sei se estaria aqui contando esta história se não fosse Cesare e o Projeto Axé. Não sei o que seria daquele menino sem ele. Cesare amava o próximo de um jeito especial, guardo o carinho dele de pai até hoje. Nos abraçava, beijava e não queria saber se a gente estava sujo da rua. A gente precisava daquilo, sabe? Se sentir gente. Ele me deu um futuro que muitas outras crianças tiveram graças ao Projeto Axé. Outras tantas merecem também. O mundo precisa de pessoas como Cesare. Obrigado por tudo, mestre!

FABIANO COELHO, 40 ANOS

Lembro quando tinha 11 anos e passava mais tempo pelas ruas de Salvador. Era bem difícil. Pedíamos dinheiro e comida no sinal, no ônibus, onde dava. Um dia conheci um educador chamado Edílson, que me chamou para conhecer o Projeto Axé, onde tinham várias crianças e pessoas com questões de vulnerabilidade e não tinham lugar nem para comer. Muita gente como eu, sem expectativa de nada. Foi justamente lá que conheci aquele cara incrível chamado Cesare. Ele acreditava em todas as crianças e não media esforços para ajudar a gente, mesmo com todas as nossas dificuldades encontradas. Era carinhoso com todos, mesmo com tanta violência que existia entre as crianças. A gente se sentia seguro com ele, era a figura de um pai que muita gente desconhecia. Cesare não permitia que nós, crianças, se sentissem oprimidas pelas mais ricas, ou mesmo pela polícia. Ele colocava na nossa cabeça que a gente era capaz, não éramos fantasmas da sociedade. Me acolheram bem, tinha comida e vale-transporte para as crianças como eu. Foi graças ao Projeto Axé que minha vida mudou e finalmente pensei num futuro. Fiz oficinas, comecei com costura e papel reciclado. Com uma parceria entre Projeto Axé e a Escola Picolino, conheci o mundo do circo e me apaixonei de cara. Era aquilo que queria para minha vida, com certeza. Graças a esse caminho traçado para mim, me mudei para São Paulo, onde estou até hoje trabalhando com o que amo. Sou muito agradecido a Cesare, pois hoje sou um pequeno empresário aqui em Pinheiros, onde tenho um espaço de circo e moro com minha esposa e meu filho Francisco, de 6 anos. Meu espaço se chama Circo dos Bichos Doidos, onde dou aula de arte circense para adultos e crianças. É um lugar cheio de alegria e boa energia para todos. O que eu seria se não fosse o Projeto Axé e Cesare? Não faço ideia. Sei apenas que ele abriu as portas de um caminho que continuo seguindo nele. Sou eternamente agradecido a Cesare por isso. Impossível não sentir a perda de um homem transformador para crianças carentes.

MÁRIO MENDES DA SILVA, 40 ANOS

Minha família era composta por sete irmãos, onde tínhamos como chefe da casa a nossa maravilhosa mãe, que, mesmo solteira, cuidava de todos nós com muito amor e dedicação. Ela não tinha um emprego fixo e trabalhava como vendedora ambulante e lavava roupa para outras pessoas. Os mais novos, como eu, acompanhava ela, pois não tinha com quem deixar. Aos 9 anos, perdi minha mãe e as coisas ficaram mais difíceis. Que saudade de minha mãe. Fui morar com meus tios. Trabalhei em ferro velho e comprava materiais reciclados, enquanto na comunidade cresciam aqueles convites para a vida do crime. O universo de ‘facilidades e ostentação’ que acabava mexendo com a mente da gente. É tentador, difícil resistir, viu? Mas preferi vender picolé na rodoviária, ganhar meu dinheiro de forma honesta. E foi na rodoviária de Salvador que conheci dois educadores do Projeto Axé. Lá, tive incontáveis oportunidades e momentos marcantes. Me convenceram da importância de frequentar a escola, como minha mãe sempre dizia. No Projeto Axé fiz minha primeira viagem de avião, para Porto Alegre, onde participei de um encontro para falar do meio ambiente. Aos 19 anos, meu ciclo chegou ao fim. Algum tempo depois retornei, mas desta vez como educador numa oficina de esportes. Resolvi, então, prestar vestibular para Educação Física. Passei, mas a faculdade era particular. Fiquei triste, não tinha condição, mas Cesare intercedeu. A equipe da coordenação falava que eu era o primeiro ex-educando a ingressar em uma faculdade e que era muito importante não só para mim, mas para o Projeto Axé também. O próprio Cesare se reuniu com o diretor da faculdade e saiu de lá com uma bolsa de 100% para mim. Cesare realizou meu grande sonho, sem nada em troca. Fiquei muito emocionado. Durante esses anos, além do Projeto Axé, já trabalhei na Fundação Cidade Mãe, Comunidade de Atendimento Socioeducativo (Case), Cipó e Ceiffar. Hoje sou personal trainer em outro projeto social, no Espaço Cultural Pierre Verger. Muito obrigado, Cesare!

JACIANE SOUZA, 43 ANOS

Não tive o privilégio de fazer parte do Projeto Axé, mas Cesare faz parte de minha vida. Sou mãe solo e tenho dois filhos, Jean e William. Olha, a vida não é fácil para uma mãe. Sou vendedora ambulante, vendo cerveja no Pelourinho. Era assim que levava comida para casa e meus filhos acabavam ficando na rua. Jean vivia na rua, não queria estudar. Me pedia para fazer um curso de costura, mas com que dinheiro? Não tinha condições. Já Willian estudava, mas depois passava o dia inteiro jogando bola, não tinham hora de voltarem para casa.  Até que um dia Jean foi acolhido da rua pelo Projeto Axé. Cesare realizou o primeiro sonho do meu filho mais velho. Deu a ele o curso de costura que ele sempre quis. Ele também fez curso de moda, isso já tem uns 10 anos já. Virou outra pessoa. Voltou a estudar, um menino de ouro. Hoje ele faz e vende bolsa. William era retado, viu? Meu Deus. Ele só entrou no Projeto Axé em 2017. Cesare também mudou meu segundo filho. Menino, você precisa ver os desenhos que ele faz. Cada um mais lindo que o outro. Faz curso de artes, ama desenhar. Estuda, tem muitos planos para o futuro. Quando eu pensei que Cesare não tinha como nos ajudar mais, veio a pandemia. Tudo fechou, não tinha como vender nada, como levaria o sustento da família? Ele nos deu um celular para os meninos estudarem. Também temos cesta básica e R$ 120 todo mês. Não faltou carne, tempero e verdura neste momento difícil. Ah, lembra quando falei que não faço parte do Projeto Axé? Hoje faço! Um sábado por mês tenho a Escola de Mães. Passei a pensar no meu futuro e hoje faço curso para me formar em cuidadora de idosos. Sempre disse que abaixo de Deus era Cesare. Hoje ele está perto de Deus.

CESARE DE FLORIO LA ROCCA

Fundador do Projeto Axé, o advogado e educador chegou no Brasil na década de 60 e desde 1990 residiu em Salvador. Na capital baiana, montou a sede do projeto Axé no Pelourinho, no Centro Histórico. O projeto já formou mais de 30 mil jovens, através da arte e educação. Foi representante no Brasil do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), além de um dos redatores do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Conviveu com figuras importantes da educação, como Paulo Freire.

Foto: Marina Silva

Matéria do Moysés Suzart, publicada no Correio da Bahia.